
O regresso da inflação a níveis que já não se registavam há várias décadas traduziu-se numa crise do custo de vida. Isso aconteceu enquanto as grandes empresas viam os seus lucros disparar à boleia da subida dos preços. Neste contexto, não surpreende que o debate sobre a distribuição do rendimento tenha ganho destaque. Como é que se explica que a inflação tenha gerado experiências tão desiguais?
Para perceber como tem evoluído a distribuição do rendimento -- e o que pode explicar essa evolução -- é útil recuar no tempo e analisar o que ocorreu desde a última grande crise anterior à pandemia: o colapso financeiro internacional de 2008. O indicador que serve de ponto de partida para este texto é o da "distribuição funcional do rendimento". Traduzindo do economês, a distribuição funcional significa a divisão do rendimento total entre quem contribuiu para a produção, ou seja, trabalho e capital. No fundo, é o que nos diz o tamanho da fatia do bolo que é entregue aos trabalhadores, em comparação com a que fica para as empresas.
No gráfico abaixo, vê-se a evolução do peso dos salários no PIB -- a tal fatia dos trabalhadores -- na economia portuguesa desde o início do século. Se nos focarmos no período a partir de 2008, é possível distinguir três fases: uma primeira, entre 2008 e 2015, marcada por uma queda abrupta do peso dos salários no PIB; uma segunda, entre 2016 e 2019, em que se regista uma ligeira recuperação; e uma terceira, entre 2020 e 2024, em que o peso dos salários aumenta e diminui de forma igualmente expressiva, regressando ao valor inicial. Uma análise mais detalhada de cada uma destas fases ajuda a perceber a economia política da distribuição do rendimento em Portugal.

2008 -- 2014: crise e austeridade
A crise financeira mundial de 2007-08 não foi o início dos problemas para quem trabalha em Portugal. O peso dos salários no PIB já vinha a diminuir desde a viragem do século e a adesão do país ao Euro. No entanto, a desigualdade na repartição do rendimento aumentou de forma expressiva com a crise que atingiu a economia portuguesa e, sobretudo, com as medidas de austeridade que foram adotadas no país.
A queda abrupta do peso dos salários no PIB esteve associada ao pacote de medidas de desvalorização salarial e de desregulação laboral aprovado no período da Troika (2011-2014). Além dos cortes generalizados na despesa pública e do aumento dos impostos, foi aplicado um conjunto de medidas de desregulação laboral que incluíam a flexibilização dos despedimentos e a facilitação do recurso a contratos precários. De forma resumida, o programa apostava na desvalorização interna e na redução dos "custos do trabalho" -- leia-se, salários -- como forma de promover a competitividade do país. O então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho (PSD) não escondeu as intenções da estratégia quando disse que só poderíamos "sair desta situação [de crise] empobrecendo".1
No entanto, o programa de austeridade não cumpriu o que prometera: Portugal saiu deste período com uma dívida pública ainda mais elevada e sem uma economia mais competitiva e robusta. Embora o país tenha deixado de registar défices externos -- ou seja, de importar mais do que exporta --, isso não se deveu às exportações, mas sim à quebra acentuada das importações, como resultado da austeridade que comprimiu o poder de compra da maioria das pessoas.2
O principal resultado das medidas aplicadas durante a intervenção da Troika foi outro: uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital, através da compressão salarial e do aumento do desemprego. O peso dos salários no PIB caiu de forma expressiva, passando de 56,6% em 2010 para 51,5% em 2015. Alguns estudos publicados nos últimos anos por economistas da Comissão Europeia3 ou do Fundo Monetário Internacional4 mostram que a desregulação laboral tem um efeito de compressão dos salários e de redução da parte do rendimento produzido na economia que é recebida pelos trabalhadores. O desemprego -- que atingiu os 17,1% em 2013 -- também desempenha um papel importante enquanto mecanismo disciplinador da força de trabalho.5

2015 -- 2019: Geringonça
A tendência de redução do peso dos salários no PIB só se inverteu a partir de 2016. A isso não será alheio o facto de, no final de 2015, as eleições legislativas terem conduzido à formação de um governo minoritário do PS apoiado pelos partidos à esquerda (BE, PCP e Os Verdes). A Geringonça -- como viria a ficar conhecida -- apostou na reversão de boa parte dos cortes nos salários e pensões do tempo da Troika. Além disso, iniciou-se uma trajetória de aumento do Salário Mínimo Nacional, que passou a ser aumentado anualmente e subiu de €505 mensais em 2015 para €600 em 2019.
Neste período, a economia portuguesa também beneficiou de uma conjuntura externa mais favorável, com a recuperação da Zona Euro, onde se encontram alguns dos principais parceiros comerciais do país, e a alteração da política monetária do Banco Central Europeu, que deu início ao programa de compra de títulos de dívida pública e contribuiu de forma decisiva para reduzir os juros pagos pelo Estado.
A recuperação do consumo interno e da procura externa contribuíram para o crescimento económico e para a redução do desemprego no país. Neste contexto, as medidas de promoção dos rendimentos traduziram-se num aumento da fatia do bolo que os trabalhadores recebem. O peso dos salários no PIB passou de 51% em 2016 para 52,7% em 2019, invertendo-se parcialmente a quebra registada durante o período da Troika (ainda que se tenha mantido abaixo do nível anterior à crise e muito inferior ao registado na viragem do século).
Apesar da ligeira melhoria na distribuição do rendimento entre capital e trabalho, o período da Geringonça não resolveu problemas estruturais da economia portuguesa. A recuperação da economia e do emprego foi alavancada pela expansão de setores como o turismo, intensivo em trabalho e assente em salários baixos. Além do volume de emprego, é preciso ter em conta a sua composição. A precariedade generalizou-se e Portugal tornou-se um dos países da União Europeia com maior peso de contratos a termo, sendo também um dos que regista maior peso dos contratos a termo involuntários (que correspondem a pessoas que não conseguiram encontrar um emprego mais estável). A monocultura do turismo e do imobiliário, promovida por uma série de incentivos para atrair investimento estrangeiro, acentuou a especialização da economia portuguesa em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo, contribuindo também para a subida vertiginosa dos preços da habitação.6

2020 -- 2024: pandemia e inflação
Com o início da pandemia em 2020, as medidas de confinamento obrigaram ao encerramento da esmagadora maioria das atividades. A crise provocada pela COVID-19 levou à quebra mais acentuada do PIB português em várias décadas. Ao mesmo tempo, os governos dos países europeus adotaram um conjunto de medidas para garantir (pelo menos parcialmente) o rendimento de quem se viu impedido de trabalhar. Como o PIB afundou e os rendimentos não caíram na mesma proporção, o peso dos salários no PIB "aumentou", mas isso não refletiu uma verdadeira melhoria da posição dos trabalhadores.
A partir de 2021, o processo inverteu-se. À medida que as medidas de confinamento foram terminando e as atividades reabriram, o rendimento produzido em Portugal voltou a aumentar e houve uma nova redução da fatia dos salários. Esta redução começou em 2021, mas foi particularmente acentuada em 2022, quando a inflação atingiu níveis que já não se registavam há algumas décadas depois da invasão russa da Ucrânia ter feito disparar os preços do petróleo e de outras matérias-primas nos mercados internacionais.
Na maioria dos países europeus a prioridade dos governos foi a de conter o crescimento dos salários para evitar o suposto risco de uma "espiral inflacionista". Em Portugal, o governo do PS seguiu esta linha e definiu aumentos inferiores à inflação para a maioria dos funcionários públicos, dando um sinal claro ao setor privado.7 A quebra de mais de 5% do salário médio real em 2022 significa que, em média, os trabalhadores perderam quase um salário mensal nesse ano. Com a restrição dos salários, a inflação transformou-se numa crise do custo de vida.8
O peso dos salários no PIB registou uma quebra acentuada em 2022 e voltou a diminuir em 2023. Enquanto muitas empresas conseguiram proteger as suas margens, os custos da crise foram maioritariamente imputados aos trabalhadores e houve uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital. A inflação e a restrição dos salários interromperam a trajetória de recuperação da fatia dos trabalhadores iniciada no período da Geringonça.
A partir de 2023, a evolução do salário médio em Portugal tem sido superior à de outros países europeus. No entanto, estes números têm de ser lidos com alguma cautela. Portugal é o país da União Europeia onde o salário mínimo mais se aproxima do salário mediano -- isto é, do salário de quem se encontra "no meio" da distribuição salarial no país. Por outras palavras, a economia portuguesa é marcada pela prevalência de salários baixos, iguais ou pouco superiores ao salário mínimo. Os dados mais recentes que o INE disponibiliza mostram que metade das pessoas recebe um salário inferior a €1050 brutos (isto é, antes de impostos).9 Neste contexto, é provável que a evolução da média dos salários reflita em grande medida o impacto da subida do salário mínimo decretada pelo governo.
Este fenómeno não reflete, por isso, uma posição mais favorável dos trabalhadores no processo negocial com as empresas. A verdade é que, nas últimas duas décadas, o crescimento dos salários nem sequer tem acompanhado a produtividade, precisamente pela fragilidade do poder negocial de quem trabalha.10 Ao contrário do que é dito pela maioria dos economistas, o problema não está apenas em fazer crescer o bolo para depois distribuir. Em Portugal, o bolo tem aumentado, mas a fatia dos trabalhadores ficou mais pequena.
O Acordo de Rendimentos, assinado pelo governo anterior (PS) com as confederações patronais e a UGT, definiu como objetivo recuperar o peso dos salários no PIB para os valores anteriores à crise de 2008-12, oferecendo benefícios fiscais às empresas que aumentassem salários em linha com as metas estabelecidas. Só que em 2023, o primeiro ano de aplicação do acordo, o resultado foi o oposto: o peso dos salários voltou a diminuir, afastando-se do objetivo definido. Com as eleições no início de 2024 e a tomada de posse do novo governo do PSD, este acordo foi revisto, para o período 2025-2028, mantendo os valores previstos no acordo assinado pelo anterior governo (4,7% em 2025 e 4,6% em 2026)., mas contemplando a possibilidade de isenção de IRS e de TSU nos prémios de produtividade e uma redução progressiva da taxa de IRC.11 A redução da desigualdade na distribuição funcional do rendimento não foi assumida como prioridade pelo novo executivo, que aposta em reduzir a taxa de IRC sobre as empresas e esperar que estas comecem a pagar melhores salários. Um cenário que, numa economia com elevados níveis de precariedade, baixas taxas de sindicalização e abrangência reduzida da contratação coletiva, é difícil de antever.
Notas
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Passos Coelho: "Só vamos sair da crise empobrecendo". Expresso, 25 de outubro de 2011. ↩
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Mamede, R. P. (2015). Calm after the storm? Portugal one year after the end of the adjustment program. Dinamia CET WP nº 13. ↩
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Da Silva, A. D., & Turrini, A. (2015). Precarious and less well-paid? Wage differences between permanent and fixed-term contracts across the EU countries. DG ECFIN Economic Papers No. 544. ↩
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Ciminelli, G., Duval, R., & Furceri, D. (2022). Employment protection deregulation and labor shares in advanced economies. Review of Economics and Statistics, 104(6), 1174-1190. ↩
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Abreu, A. (2020). Acerca da repartição funcional do rendimento na economia portuguesa. Notas Económicas, 50(8), 85-101. ↩
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Drago, A. (2021). Turismo e pandemia: fragilidades da internacionalização sitiada da economia portuguesa. Observatório sobre Crises e Alternativas (CES), Caderno nº 16. ↩
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Costa diz que mexer nos salários iria criar uma "espiral inflacionista". SIC Notícias, 9 de abril de 2022. ↩
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Martins, D., & Ferreira, V. (2023). A inflação pós-pandemia: reflexões a partir da economia portuguesa. Observatório sobre Crises e Alternativas (CES), Caderno nº 18. ↩
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INE (2023). Estatísticas do Emprego -- Remuneração bruta mensal média por trabalhador. ↩
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Coimbra, P., & Rodrigues, J. (2022). Do trabalho para o capital: as verdadeiras contas certas. Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Maio de 2022. ↩
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O Acordo pode ser lido na íntegra aqui: https://sdistribution.impresa.pt/data/content/binaries/db3/6d8/16b62c9f-5f9f-4346-a72d-f2412f26de9c/Acordo-Tripartido-2025-2028\-\--versao-final.pdf ↩